Revisto por: Inês Cardoso
O dia em que a escravatura estará apenas presente nos livros de
História
Ontem, dia 2 de dezembro,
celebra-se o Dia Internacional para a Abolição da Escravatura, data criada pela
ONU há 64 anos. Faz sentido discutirmos este tema volvidos mais de 100 anos da
abolição da escravatura na maior parte dos países ocidentais? Muitas pessoas
considerarão este um capítulo triste, mas encerrado nas páginas dos livros de
História. Não poderiam estar mais enganadas: calcula-se que atualmente existam cerca
de 30 milhões de pessoas sujeitas às mais diversas formas de escravatura – mais
do dobro do número de africanos transportados para o continente americano entre
os séculos XVI e XIX!
A escravatura é um fenómeno quase
tão antigo como a Humanidade. Era praticada já nas civilizações pré-clássicas,
e mesmo os gregos não a encaravam como um obstáculo ao regime democrático então
criado. No Império Romano, o número de escravos excedia mesmo a população
livre! Nesta época, os escravos eram na sua maioria capturados entre os
inimigos de guerra e criminosos, havendo também alguns registos de casos de
escravatura por dívidas.
Na Idade Média a escravatura não
deixou de existir, embora sem o peso socioeconómico que tivera no período
anterior. Contudo, foi com a Expansão Marítima e a constituição de Impérios
Coloniais na Época Moderna que o tráfico de escravos se expandiu
exponencialmente. Os portugueses foram os primeiros a iniciar esta atividade
lucrativa, sendo seguidos pelos espanhóis, holandeses, ingleses e franceses. Os
próprios governos incentivaram o tráfico que, para além dos lucros, era uma
forma de contornar a falta de mão-de-obra nas regiões recém-descobertas. Uma
média de 55 000 africanos chegavam anualmente à América. O Brasil, as colónias
inglesas da América do Norte e as Antilhas eram os principais pontos de
chegada. Capturados e transportados nos navios negreiros, conhecidos por “tumbeiros”,
mais de um terço morria antes de chegar ao seu destino. Empilhados nos porões, acorrentados,
ocupando um espaço correspondente ao tamanho de uma sepultura, submetidos a uma
alimentação deficiente e à total ausência de condições de higiene, apenas os
mais resistentes sobreviviam. Uma vez chegados ao continente americano, eram
expostos em mercados especializados, onde acorriam os colonos para avaliarem o
valor da “peça”. Tratados como mercadoria, eram separados das famílias e depois
de vendidos, os donos, para indicar a posse, marcavam-nos com um ferro em
brasa, como se faz ao gado. Em termos legais, os escravos não usufruíam de
quaisquer direitos, incluindo o direito de formarem família. Os violentos
castigos físicos que lhes eram regularmente aplicados, muitas vezes culminando
na sua morte, não eram penalizados pela justiça.
Apesar de muitos missionários
defenderem as populações ameríndias da escravização, a mesma atitude de
complacência não se aplicou aos escravos negros. Assim, só no século XIX, na
sequência das ideias iluministas e liberais de liberdade, igualdade e fraternidade,
se desenvolveram movimentos abolicionistas. A abolição da escravatura foi uma
questão controversa, que colocou em causa muitos interesses económicos e variou
de país para país, chegando a provocar autênticas guerras civis, como foi o
caso da Guerra Civil Americana (1861-1865). Em Portugal, a escravatura foi definitivamente
abolida em fevereiro de 1869, após um processo lento e gradual que teve início
em 1791, em plena época pombalina.
Porém, a abolição do estado de
escravidão não extinguiu a sua prática que, infelizmente, se arrasta até aos
nossos dias. Em pleno século XXI, continuamos a assistir, embora de forma
camuflada e, na maior parte dos países, ilegal, situações de escravidão por
dívidas, servidão e trabalho forçado, tráfico humano para remoção de órgãos ou
com fins sexuais, múltiplas formas de trabalho infantil, venda de crianças para
a adoção, venda de noivas e recrutamento forçado de crianças em conflitos
armados.
A Walk Free Foudation, uma fundação australiana que combate a
escravatura moderna, lançou este ano o primeiro o ranking da escravatura – The Global Slavery Index 2013[1].
Num total de 162 países, a Mauritânia ocupa a primeira posição como o país com
mais casos. Portugal encontra-se nos últimos lugares (posição 147º), embora
sejam estimados 1300 a 1400 casos de escravatura, um número muito superior
aquele que foi divulgado pelo Observatório do Tráfico de Seres Humanos – 164
casos sinalizados de janeiro a setembro deste ano. Entre esses casos,
predominam as vítimas de exploração sexual, maioritariamente do sexo feminino.
Contudo, também existem organizações que forçam crianças à mendicidade e
criminalidade e outras que recrutam mão-de-obra trazida para Portugal ou levada
para o estrangeiro com promessas de trabalho.
A celebração deste dia deve ser
feita com ações e não com discursos vãos; ações que se estendam por todos os
dias, de todos os anos, até que o tema da escravatura esteja apenas presente
nos livros de História.
É essencial o comprometimento dos
Estados na luta contra a escravatura, mobilizando os meios disponíveis para
cumprir de facto os Artigos I e IV da Declaração Universal dos Direitos
Humanos: “Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. (…)”
e “Ninguém será mantido em escravidão. A escravidão e o tráfico de escravos
serão proibidos em todas as suas formas.”.
Ao invés de omitir e camuflar a
realidade, urge divulgar e informar. Creio que a prevenção só será viável
quando a informação se alargar ao maior número de pessoas
possível – que formas de escravatura subsistem; a quem nos devemos dirigir se
conhecermos algum caso; que organizações apoiam as vítimas na sua reintegração.
Para terminar, gostava de deixar
esta mensagem: cabe-nos a nós, seres humanos e sociais que somos, estar mais
atentos ao Outro, interpelar esse Outro que nos parece perturbado, triste e
fechado sobre si mesmo. Porque atualmente os escravos não se encontram
acorrentados nem expostos num mercado à vista de todos…
0 comentários:
Enviar um comentário